I - ESTUDOS SOBRE MULHER
LITERATURA: HISTÓRIA,
AVALIAÇÃO, PERSPECTIVAS
Constância Lima Duarte*
Até recentemente — é fato conhecido — o estudo de questões relativas à mulher e sua representação na literatura não era considerado um objeto legítimo de pesquisa. A consolidação de trabalhos dessa natureza nos meios acadêmicos brasileiros data de poucos anos, quando grupos de pesquisadores tomaram a iniciativa de se reunir para desenvolver estudos, apresentar os resultados de suas pesquisas e discutir textos teóricos relativos ao tema.
A tendência de expansão dessa linha de trabalho revela-se indiscutivelmente significativa, se observamos o número sempre crescente de dissertações, de teses de doutorado, de pesquisas apresentadas em Congressos e de publicações relativas à mulher na literatura.
A criação em 1984 da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Letras e Linguística — a ANPOLL — e a formação do GT Mulher e Literatura1, permitiu de certa forma que os pesquisadores legitimassem o tema e constituíssem um fórum para a apresentação e discussão de seus trabalhos. Também a criação da ABRALIC — Associação Brasileira de Literatura Comparada, em 1986, contribuiu para a reunião sistemática dos professores, constituindo-se também num espaço privilegiado de divulgação de pesquisas. O volume de estudos em torno do tema mulher em Congressos da ABRALIC pode ser verificado quando observamos que em três congressos — de 1987, 1988 e 1989 — dos 96 papers apresentados, 30 se referiam a essa temática, segundo levantamento de Heloísa Buarque de Holanda.
Mas, mesmo antes da criação dessas importantes associações, grupos de professoras já haviam tomado a iniciativa de organizar, desde 1985, alguns encontros sob a denominação: Seminário Nacional Mulher & Literatura — que prepararam o terreno para a imediata expansão do Grupo de Trabalho ligado à ANPOLL e garantiram o significativo impulso no que diz respeito à sua respeitabilidade dentre os demais GTs.
Diferente dos encontros realizados pelo GT da ANPOLL (composto de um grupo de professores e limitado pela estrutura maior do encontro bi anual da Associação), o Seminário Nacional Mulher & Literatura se caracteriza principalmente por promover uma maior divulgação de trabalhos e pesquisas nos meios acadêmicos; por seu caráter interdisciplinar; pelo deslocamento por diferentes universidades brasileiras; bem como pelo empenho em possibilitar uma atualização, na medida em que busca um intercâmbio com especialistas nacionais e estrangeiros.
Assim, as diversas oportunidades de encontros anuais — os seminários, os congressos da ANPOLL e os da ABRALIC — apesar de relativamente recentes, têm permitido um rico intercâmbio de experiências entre estudiosos de diferentes instituições e nacionalidades, a divulgação dos resultados de pesquisas e trabalhos críticos, bem como o estabelecimento de linhas de pesquisa sobre a mulher nos cursos de pós-graduação e departamentos de língua e literatura, a ponto de se configurarem numa referência obrigatória na área de estudos em questão.
Aos poucos estamos realizando, por exemplo, o mapeamento desse campo de estudo nas Universidades brasileiras, a articulação de intercâmbios entre os pesquisadores, o debate com teóricos estrangeiros, aliás, decisivo para uma maior abertura teórica dos trabalhos e para o contato dos pesquisadores nacionais com as novas tendências da crítica praticadas no exterior.
Inicialmente as investigações privilegiavam grandes linhas intituladas "Mulher e Literatura: Perspectivas teórico-críticas", "Representações do Feminino no Texto Literário", "Literatura e Feminismo" (enfoque sócio-histórico), "Literatura e o Feminino" (enfoque psicanalítico) e "Literatura e Mulher" (enfoque estético-formal), que tentavam dar conta da diversidade de trabalhos que tratavam desde questões de caráter teórico acerca da linguagem e sexismo, à presença da mulher em literaturas de línguas estrangeiras, aos estudos acerca da mulher enquanto escritora de ficção, à mulher enquanto personagem de textos literários, à mulher negra, às escritoras latino-americanas, às relações entre mulher, história e sociedade, bem como às questões como gênero e ruptura, erotismo, alteridade e subversão, mitos, mulher e dramaturgia e identidade social, e os aspectos teóricos e metodológicos da crítica feminista.
A preocupação com o resgate de escritoras e a análise de obras antigas também se evidenciou como uma promissora linha de pesquisa, tendo em vista a necessária revisão do cânone literário e o questionamento dos critérios normativos definidores da qualidade de um texto literário. Consideramos da maior importância o conhecimento do passado como um pressuposto para o estabelecimento de uma memória cultural.
É por demais conhecido que muitos cursos de literatura e de cultura estão centrados em autores do sexo masculino, brancos e mortos. E que europeus e americanos detêm o monopólio do "Ocidente", englobando aí as categorias do "universal" e, conseqüentemente, do que seriam os "valores universais", estabecendo um único cânone e ignorando sistematicamente a diversidade de etnias, de gêneros e de culturas com que as sociedades são constituídas.
A ampliação do cânone defendida pelos multiculturalistas pretende levar em conta a excelência da realização formal da obra e, a partir de uma abertura cosmopolita, contemplar obras que ultrapassam sua cultura específica, tanto pela profundidade com que captam a realidade particular, como pela capacidade de transmitir a percepção deste particular a outras esferas e, não, como dizem alguns, refletir unicamente uma preocupação de ordem geográfica, étnica ou de gênero.2 Uma literatura limitada apenas ao horizonte de gênero ou de etnia, é forçoso admitir, torna-se uma literatura restrita a um campo muito estreito de visão. Seria, por exemplo, como Roberto Reis aponta, reduzir drasticamente a importância de Virgínia Woolf ou Clarice Lispector se considerássemos a literatura que produziram apenas como feminista, ou a de Lima Barreto como literatura negra, apenas porque os autores puseram em destaque uma luta específica.
Este movimento de revalorização da literatura escrita por mulher pretende ler os textos no sentido de re-ver com outro olhar, independente das amarras do preconceito de gênero. A crítica do desagravo — na conhecida expressão de Jean Franco — é plenamente justificada quando se lembra da mitificação promovida pela ideologia patriarcal em cima dos textos escritos por mulheres. Na trajetória desta crítica, algumas investigações se dirigiram para o reconhecimento e a identificação da representação ou da imagem da mulher na literatura, e da busca de escritoras sem tradição literária própria. Outras, contemporaneamente, têm como elementos comuns a crítica da cultura ocidental, a partir das teorias pós-estruturalistas que desmontam o conceito de identidade, e postulam a mulher como uma construção ideológica.
O esforço que vem sendo realizado na área da pesquisa, hoje em nossas universidades por algumas dezenas de pesquisadores, tem permitido pouco a pouco a reconstrução da história da cultura feminina brasileira. A diversidade dos aspectos investigados, aliada a um aprofundamento do conhecimento teórico metodológico, aos poucos começam a atender aos principais problemas inerentes aos estudos, ao mesmo tempo em que mais e mais questões se colocam a todo instante.
O aumento substancial no número de seminários específicos sobre a mulher, de cursos a nível de extensão e de pós-graduação, de teses e de monografias, bem como das publicações sobre o tema, está revertendo com rapidez um quadro, cuja carência apontávamos há bem pouco tempo. Se fosse o caso de querermos apreender a configuração atual das experiências no campo da mulher e da literatura em nossas universidades, poderíamos talvez sintetizá-las em poucas palavras: estamos trabalhando na reconstrução e na crítica de modelos, de modo a tornar compreensível e instigadora a perspectiva feminina. Estamos naturalmente contribuindo para a revisão dos valores normativos do cânone literário, ao apresentarmos a todo instante novas escritoras e novas obras, em tudo merecedoras de aí serem incluídas. Também, tornou-se uma questão política de grande premência verificar como a raça, o gênero, a classe e as preferências sexuais se interagem.
Como a abertura interdisciplinar é fundamental para enriquecer as discussões em torno das representações literárias da mulher e das peculiaridades de ação das escritoras, têm sido convidados a colaborar nos encontros não só pesquisadores vinculados às Letras, como, também, professores de outras áreas, tais como Antropologia, História, Lingüística e Psicologia. Dentre os diversos conferencistas com quem tivemos a oportunidade de debater, lembro Ria Lemaire (Universidade de Utrecht), Darlene Sadlier (Universidade de Indiana), Malcolm Coulthard (Universidade de Birmingham) e Nara Araújo (Universidade de Havana), que muito contribuíram para uma maior abertura teórica bem como para o intercâmbio entre os pesquisadores nacionais e as novas tendências da crítica praticadas no exterior.
Além de Palestras e Mesas-redondas de professores, os encontros e Seminários têm contado também com a presença de escritoras, como Lya Luft, Sônia Coutinho, Marina Colasanti, Rachel de Queiroz e Helena Parente Cunha, entre outras, que dão depoimentos acerca do trabalho literário e estabelecem relações entre seu trabalho e o contexto histórico e social brasileiro.
Em 1993 tornou-se evidente a necessidade de reformular as linhas de pesquisa do GT da ANPOLL, tendo em vista as especificidades e diversidades das investigações e o fato de que elas se constituíram na base de sustentação dos estudos sobre mulher e gênero, no quadro teórico-crítico contemporâneo de nossos cursos de letras. As linhas de pesquisa tomaram, então, a configuração que possuem no momento atual e se organizaram em torno de, principalmente, três grandes eixos: "Teoria e crítica feminista: vertentes", "A questão do Cânone", e "Gender — estudos de gênero".3
Um dos fatores que considero decisivo para a afirmação dos estudos "Mulher e Literatura" junto à comunidade acadêmica, foi a publicação de um Boletim Informativo desde a primeira reunião, contendo informações acerca dos participantes, as pesquisas, publicações, os cursos ministrados em pós-graduação e as teses defendidas sobre a temática, além dos textos apresentados e debatidos no encontro. O Boletim tornou-se o principal veículo de divulgação das atividades realizadas pelo grupo, ao mesmo tempo que tem viabilizado o intercâmbio e a troca sistemática de experiências profissionais neste campo específico de investigação.
* Doutora em Literatura
Brasileira pela USP; Professora de Literatura Brasileira da UFMG
Coordenadora do GT "A Mulher na Literatura", da ANPOLL, no biênio
94-96.
1 O GT Mulher e Literatura
foi criado por sugestão da Profa. Susana Bornéo Funck, da
UFSC.
2 Cf. Jornal Folha de São Paulo, 13/08/95.
3 Nota da
coordenação do GT: Em reunião do GT ocorrida em
Salvador, durante o VII Seminário Nacional, em
setembro de 1999, as linhas temáticas de pesquisa do grupo foram
reformuladas. Para maiores detalhes acerca das
alterações, ver o "Plano de Atividades do GT".